terça-feira, 18 de novembro de 2014

A comunicação enquanto estratégia de defesa e de reconstrução de laços afetivos e familiares entre os negros africanos no Brasil

Por Gildazio de Oliveira Alves
O tráfico de escravos africanos para as américas produziu o turbulento encontro de distintos grupos étnicos das mais distintas tribos e regiões da África, ainda nos porões dos navios negreiros. Nesses contatos iniciais o desenvolvimento de linguagens e códigos comuns se transformaria em ferramenta imprescindível na formação de novos laços afetivos entre os negros e de estratégias de comunicação e defesa frente aos senhores.
       O estabelecimento de novos laços de nação e a construção de novas identidades é o centro da discussão estabelecida por Maria Inês Cortês de Oliveira em Viver e morrer entre os seus. Para essa autora uma vez desfeitos os laços familiares e afetivos de outrora, os africanos encontraram nas mais variadas formas de contatos entre os “irmãos de nação”, maneiras de construção de novos laços afetivos.
            Para Robert W. Slenes em Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil”, a falta de interesse dos brancos brasileiros em conhecer a língua dos escravos, aliada ao fato dos diferentes grupos possuírem um vocabulário-raiz comum a todos, possibilitou aos escravos a oportunidade de defesa frente a seus senhores, mediante códigos de comunicação que misturavam a língua de origem com o português, uma resistência silenciosa e dissimulada. A partir dessa primeira análise torna-se possível delinear o estabelecimento de vínculos ente os escravos, a partir da associação dos mesmos, na formação de uma verdadeira “irmandade de defesa” e/ou combate. Os malungos, companheiros de embarcação, irmãos de luta e de sofrimento, conhecendo um certo dialeto raiz, fortaleceram-se frente aos brancos, que desconheciam e recusavam tal dialeto.
O contato dos escravos com uma nova realidade exigiu a adequação dos grupos a novas regras, com critérios que demarcavam limites raciais, sociais e culturais. Esse sistema de classificação e separação criteriosa foi uma imposição do Poder civil e da igreja visando a separação de grupos considerados culturalmente diferentes e potencialmente hostis, que inicialmente tornou os grupos mais coesos, e se esvaeceu posteriormente, com os matrimônios e as práticas religiosas intergrupal.
A construção de novos laços familiares e afetivos, passaram inicialmente, pela concepção de “irmão de nação”, extremamente importante para as estratégias de “associação étnica”.  Os vínculos de solidariedade entre negros foram sendo construídos pela comunicação estabelecida e graças ainda, à constatação do “sofrimento comum”.
Antigos laços foram refeitos com o encontro entre parentes oriundos da mesma região. Esses vínculos estavam explícitos nos testamentos quando, até parentes mais afastados eram lembrados. Quanto à constituição de novas famílias tornou-se comum a preferência dos indivíduos pelos irmãos de nação. Outra forma de reconstrução de vínculos afetivos e familiares foram as relações de compadrio, essencial para assegurar a proteção e educação dos filhos na ausência dos pais. Nesse caso, percebe-se o parentesco ritual substituindo vínculos familiares desfeitos pelo cativeiro e a recomposição simbólica dos “laços de família”. No tocante a relação entre vizinhos e agregados, um exemplo são as condições de moradia em Salvador do século XIX, que permitia, a partir das moradias coletivas a partilha do mesmo teto entre escravos e libertos de uma mesma nação, possibilitando a formação de comunidades e a consequente articulação de levantes.
A comunicação foi, sem dúvidas, fator primordial para o estabelecimento de novos vínculos e para a redefinição de identidades. A língua bantu foi facilitadora dessa articulação entre escravos no centro-sul e, a nagô na Bahia do século XIX, perpassava qualquer ideal de nação e tornava-se língua comum entre escravos e libertos. A comunicação foi utilizada ainda, enquanto instrumento de defesa, na soma de esforços no sentido de atenuar o sofrimento do cativeiro. 
Assim, Slenes destaca que a utilização do termo “ngoma vem” como código de comunicação usado pelos escravos para avisar a seus parceiros (malungu) da presença do senhor ou do feitor. A expressão, incompreendida pelos senhores, era a mistura da linguagem bantu com o português. A formação da nova identidade bantu no Brasil, ocorre, com os escravos preservando suas raízes culturais e, simultaneamente, incorporando novos elementos, como parte da linguagem e da religião dos brancos, que, por sua vez, desprezavam os africanos, suas linguagens e seus costumes.
Para os grupos africanos “a vida entre os seus”, permitia, concomitantemente, o fortalecimento no enfrentamento das agruras do cativeiro e, mais enfaticamente a reconstrução de vínculos familiares. O estabelecimento de tais vínculos, teve na possibilidade de comunicação, através de uma linguagem com termos conhecidos de todos, fator primordial e indispensável. Essa linguagem pavimentou a reconstrução das identidades bantu e nagô no Brasil. Na Bahia, segundo Maria Inês Oliveira, a reconstrução de vínculos ocorre com os africanos procurando, preferencialmente “viver entre os seus” e, ao mesmo tempo integrando-se a relações com outros grupos, como os crioulos, com quem partilhavam a árdua tarefa de sobreviverem enfrentando hostilidades e preconceitos.

SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil”. Revista da USP, 12 (jan/fev. 1991/1992), 48-67.
OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX”. Revista da USP, 28 (dez/jan/fev, 1995/1996), 174-193.

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